A mulher que passa.

Teu olho me olhou profundo. 
Era Agosto, uma noite fria, num lugar onde só tinham pessoas frias. Foi o teu olhar que me olhou.
Poderia ter sido qualquer outro. Até hoje me questiono o porquê o seu.

Naquele lugar desconhecido, eu andava olhando para os lados. Eu estava sozinha. Você acompanhado. Não de uma namorada, talvez colegas da faculdade, amigos de infância. Talvez conhecidos apenas.

Eu olhava o céu. Estava frio. Mas eu já disse isso. E me repito. Como sempre fiz. Como fiz naquela noite também.

Você estava de preto. Cachecol preto. Uma touca antiga. Lembro de te achar estranho. Mas todos naquela cidade eram estranhos. Então decidi que você era normal.

Quando olhei para o celular, fingi ver as horas, passei por você. Você esbarrou em mim. Não sei se propositalmente. Se sem querer. Mas esbarrou.

Levantei o olhar. E o teu olhar me olhou.

Ficamos quanto tempo assim, dez minutos ? Acho que menos. Nem um minuto deve ter sido. Mas sabe a sensação de que . É. Essa sensação. Eu tive.

Ei, cara! Eu ouvi dizerem. Me apressei. Desculpas. Sai andando. Você me segurou, de leve, pelos braços. 

Eu parei. Eu queria que você tivesse feito isso. Te desculpo se tomar um café comigo.

Não falo com estranhos. Você nem se despediu dos amigos. Só veio atrás de mim. Olhava para baixo, sorria sem graça, enquanto você tentava me convencer de não ser um estranho.

Eu gosto de Gal, e Caetano. Dizia você. Totalmente Clichê. Afirmei.

Então, eu vejo Tarantino e Kubrick. Coisa de intelectual. Nada que eu não conheça.

Leio Nietzsche?! E é assim que me convence que não é estranho ?! Rimos, os dois.

Tá. Da sua bolsa de carteiro, tirou um livro. Não me deixou ver qual era. Parou em uma mureta. Continuei andando. Bem devagar, confesso. Pensei porque não continuava a andar comigo.

De repente, você pula na minha frente. Não me assusto. Sabia que você estaria alí. Me entrega o livro. 

Sorri. Me dá um beijo na bochecha. Vai perceber que não sou tão estranho.

Vira, e caminha na direção contrária.


No livro.
Como te adoro, mulher que passas Que vens e passas, que me sacias Dentro das noites, dentro dos dias! Por que me faltas, se te procuro? Por que me odeias quando te juro Que te perdia se me encontravas E me encontrava se te perdias? Por que não voltas, mulher que passas? Por que não enches a minha vida? Por que não voltas, mulher querida Sempre perdida, nunca encontrada? Por que não voltas à minha vida? Para o que sofro não ser desgraça?


O livro? Coletânea completa de Vinicius de Moraes.
Alí eu percebi que você não era estranho.

Você nunca mais apareceu.